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Baile no Galpão

Uma mulher e um homem são vistos em pé, de frente um para o outro. Ambos são brancos de cabelo castanho escuro. A mulher é vista de costas, de frente para o homem. Ela usa blusa branca, saia azul clara e rodada e botas beges de salto. Está com o cabelo preso em duas tranças amarradas por fitas e com os braços abertos para cima, dando estalo com os dedos. O homem está de chapéu, camisa, bombacha e botas, todos marrons. Usa um lenço azul claro no pescoço. Ele também está com os braços abertos para cima e estalando os dedos de frente para a mulher.
Dança típica de casal gaúcho

    Por Vó Pema (Iracema Soares de Lima)


    Jovenal, dono de uma estância com mais de mil cabeças de gado: um rebanho de ovelha a perder de vista. 

    Em uma manhã, antes do clarear do dia, Jovenal com os peões saíram, em uma campereada pelos campos. Tinha uma cerração fria, era começo da primavera. Aquela época em que os campos estão verdes e as flores rasteiras estão brotando em cores variadas de azul e amarelo. No horizonte, os primeiros sinais que a majestade, o sol, está chegando, vermelho com labaredas em formato de uma enorme bola de fogo. Passados alguns segundos a bola vai se transformando em cor de ouro, os raios começam a dar brilho: difícil de olhar para eles de olho nu. Maravilha criada por nosso Deus eterno, na campanha todas as manhãs, quando nasce o sol. Logo a cerração começa a baixar e o sol brilha.

    Jovenal, cria da terra (para melhor entendimento, nascido e criado ali no campo), tinha experiência para saber se os rebanhos e o campo eram bem cuidados. O fazendeiro chegou no acampamento antes dos peões, apeou do cavalo, retirou o freio da boca do animal e largou o buçal no chão para o pingo pastar à vontade. Abriu uma rede de um galho de uma frondosa árvore que fornecia conforto para os campeiros descansar, embalados pela brisa do vento.

    Jovenal, entregue ao balanço da rede, sentiu-se realizado como homem, filho, esposo e pai da Joana e da Júlia, que estão por mais um ano para receber o canudo de formatura veterinária. Assim, fazendo uma receptiva rápida, sentiu como sempre os seus amigos peões. Como agradecer? Presentes, gorjetas...Continuava pensando e veio de súbito uma ideia: Jovenal começou a cantar e a rodopiar os pés dentro da bota. À noite, os tropeiros faziam um sorteio, para saber quem seria o cozinheiro do dia. O sorteado não vai para a lida no campo e sim para o acampamento, providenciar tudo para um almoço bom e nutritivo. Jovenal levantou-se da rede numa alegria, sapateando uns passos de chula. Os peões chegaram cansados da lida com o gado: estava no tempo da vacinação. Vendo o patrão naquela felicidade, olharam-se com aquele olhar de que algo novo vem por aí. Jovenal pegou a garrafa de cana, sua preferida, só para comemorar acontecimento especial. O patrão emocionado faz sinal para sentarem-se. Um pouco ansioso falou:

    - Vamos todos, peguem seus copos, vamos comemorar com um trago de cana pura.        

    Jovenal com os olhos derramando lágrimas de emoção falou:

    - Sabe, meus peões amigos, gente da minha confiança, quanto sou grato a vocês que com minha ausência cuidaram de tudo com detalhes, como se eu estivesse presente.        

    Com o olhos marejados e voz embargada:

    - Vocês são muito mais que empregados, são investidores. Por puro merecimento eu darei liberdade para fazerem um bailão e convidar todos os parentes e amigos. 

    Jovenal secava as lágrimas de emoção e alegria. Os amigos peões, para disfarçar as lágrimas, fizeram um brinde erguendo os copos e agradecendo ao patrão e convidando-o, ele e a família para o baile. Naquele tempos, homem macho não chorava em público, para não demonstrar seus sentimentos. Eram educados com rigidez de macho, que grande ignorância, ainda bem que foi no passado.       

    Naquela noite no galpão os tropeiros juntaram-se com as famílias e fizeram um carreteiro delicioso com a carne seca, que aqui no sul tem o nome de charque. Junto com os familiares fizeram a lista dos convidados, amigos gaiteiros e violeiros, todos familiares. Fazendeiros e boas famílias da redondeza contaram cento e quarenta e três pessoas, entre adultos e crianças foram. 

    Na madrugada seguinte, como todas as manhãs, saem a camperear o campo, o gado e todas as espécies de criação. O grupo separam-se de dois ou três peões, para camperear todos os quatro cantos da grande fazenda, todos felizes cantarolando uma prece, assim é, ou cantando uma canção de amor, uma prece ao criador do céu e da terra, amém.

    Preparos para o baile iam sendo realizados um pouco por dia, cada um chegou ao final dos seus projetos conforme foi dividido. A felicidade e a alegria estavam de mãos dadas. Naquele sábado, os peões tinham campereado na sexta-feira, tin tin por tin tin, tudo em ordem por dois dias, abençoado por nosso criador do céu e da terra. 

    Jovenal levantou-se como todos os dias: madrugando, só que não foi para o galpão como sempre e sim em direção à capela. Isaura, sua esposa, ainda dormia tranquila. Olhando para ela com amor e ternura, trazendo lembranças de três anos que passaram lutando pela vida de Isaura, sua querida amada esposa, longe de casa, seus bens entregue à peonada. Suas filhas gêmeas acabavam de passar no vestibular com dezesseis anos e meio. 

    Aquele dia era especial. Chamou Marta, que era moradora na casa dos patrões, foi babá de suas filhas, agora dama de companhia de Isaura. Já era da família. Marta veio atender ao chamado às pressas. Jovenal vendo-a apreensiva, falou: 

    - Isaura está bem, só quero fazer uma surpresa, preciso da tua ajuda.          

    Marta respirou aliviada, amava sua patroa como fosse sangue do seu sangue.

    Jovenal falou: 

    - Marta, preciso da tua ajuda, quero enfeitar o altar, com as flores preferidas de Isaura, aquelas mesmas do batizado, das gêmeas Júlia e Joana, que são todo meu tesouro. Minha pequena família.

    Os olhos dele brilhavam de amor e felicidade. Marta desceu as escadas emocionada e falou:  

    - Venha, patrão, vou levá-lo até o jardim e mostrar-lhe as flores preferidas da patroa.

    Jovenal meio inibido falou baixinho: 

    - Marta, você sabe guardar segredo?

    - Sim se ser para patroinha... 

    Ele deu uma limpada na garganta dizendo:

    - Ajuda-me a fazer uma surpresa para Isaura, não entendo nada de arranjos, nem de flores.

    Marta, olhando para o patrãozinho, tão romântico e frágil...Ela morava com eles desde a gravidez de dona Isaura das gêmeas, quase vinte anos. Era a primeira vez que conheceu como patrão era, frágil e romântico. Assim, pensativa, caminhava na frente dele levando-o até as flores preferidas de sua esposa: eram margaridas, violetas e camélias brancas com dálias amarelas. Mostrou o comprimento dos cabos para o corte, menos as violetas que têm cabo curto, e colheram as flores. Agora, os arranjos nos vasos. Marta pediu licença: precisava ir medicar dona Isaura. 

    - O senhor coloque cada espécie de flor em cada vaso com água até o meio. Deixe as violetas para a minha volta.

    Jovenal, homem de grandes negócios, viajado, dedicou-se com amor por sua famíla e descobriu seus dons artísticos. Mas Marta levou mais de duas horas para voltar. Entrando silenciosa na capela, ficou pasma quando seu olhar fixou naqueles arranjos artísticos. Entrou quieta e saiu calada sem perturbar o momento.

    O relógio da capela bateu dez horas. Os moradores, peões e familiares estavam nos últimos preparos para o grande baile de campanha e o salão do jantar, decorado em  botões de rosas vermelhas e violetas. O salão do baile estava decorado com papeis coloridos e flores de cerejeiras e folhas verdes.

    Os animadores eram os serranos de bom Jesus e vários gaiteiros e violeiros amadores da região: cada um querendo ser o melhor. Só ia dar baile da melhor qualidade, daqueles de uma noite e um dia sem parar música da boa. 

    Tudo estava pronto às três horas da tarde, amimados os envolvidos naquelas tarefas. Felizes e cantando contando piada foram dar um mergulho no poço do riacho: um banho de água fria e ficavam energizados.

    Vinte para as dezessete horas, os sinos da capela badalaram chamando as pessoas para a cerimônia da missa. Êta gauchadas, todos os gaúcho de pichas, dos pés ao pescoço, chapéu na mão esquerda, a mão direita era livre para fazer o sinal da cruz e apertar a mão dos amigos. Em seus pescoços, lenços vermelhos, brancos e alguns pretos. Ah, mas era bonito de ver a gauchada e os lenços coloridos. Ia as  prendas de todas as idades com aqueles vestidos coloridos cheios de babados e rendas. A criançada acima de quatro anos já usava os vestimentos gaúchos nos cabelos, todas as prendas usavam fitas e flores coloridas para enfeitar os longos cabelos.

    Estou narrando um pouquinho da cultura gaúcha.

    O padre chegou dando uma boa tarde geral e abençoando as pessoas presentes. Jovenal e Isaura com suas filhas Júlia e Joana sorrindo para os convidados foram aplaudidos por todos. Uma missa festiva sempre demora um pouco mais. Às dezenove horas só faltava chegar o conjunto Serranos, que chegariam a partir das vinte e uma horas. Os gaiteiros amadores das redondezas divertiam-se, tocando e cantando acompanhados pelos violeiros locais. O churrasco encheu o salão com aquele aroma de encher as bocas de saliva. Comeram e beberam, ao som das músicas gaúchas e toadas campeiras. Os serranos chegaram tocando e cantando o baile da mariquinha. 

    O baile estava animado, dançava gente grande e pequeninha. O chopp, vinho e cana da boa fizeram efeito em algum cabra namorador, que deu uns apertos na filha de um gaúcho que não gostou: o velho pegou o peão pelo lenço levando-o para fora para dar uns sopapos. O alvoroço engrossou, relampejou. Revólver e facão. Jovenal, homem respeitado por todos deu uns gritos descarregando seu trinta e dois para cima e falou: vamos acabar com o baile ou com o bochincho?

    - Continua o baile, patrão - falou um dos seguranças e levou o cabra para um passeio. E Jovenal gritou alegre para os serranos: 

    - Toca o baile da mariquinha!

    Isaura gritou: 

    - Vamos começar tudo de novo, o café com farofa já está sendo servido! 

    E convidou o marido para dançar: saíram dançando o xote figurado. As gêmeas dançaram com os peões amigos de infância. O baile e a comilança foram até onze horas da manhã.

    O que aconteceu depois não sei. Dormi.


Com noventa anos de histórias para contar, a gaúcha Iracema Soares de Lima é natural de São Francisco de Paula, mas reside em Caxias do Sul, RS. É artista plástica e escritora. Em seus romances, ela mistura ficção e autobiografia para tratar de temas como a transição da infância à vida adulta e as experiências cotidianas enquanto uma pessoa com deficiência visual.

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Comentários

  1. Baila Nathalia30 junho, 2023 20:20

    Amei! Amei o texto e o blog!

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  2. Texto muito rico oriundo de uma alma linda e sabia; parabéns!!!!

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  3. Linda história. Amei.

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  4. Que delícia de texto! Amei!
    Parabéns a essa alma sensível e amável: Dona Iracema! 🌹

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  5. Lindo texto!!!!!

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  6. Imaginei cada parte, entrei no tempo e fui nas cenas. Texto que pega...Amei!

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  7. Texto com cheiro da terra. Muito lindo ver a sensibilidade dessa mulher, a maneira como coloca seus sentimentos e suas emoções nas palavras escritas.

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