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Prelúdio para Eva

Foto de geada na cidade de São Francisco de Paula, Rio Grande do Sul. Vista de um campo embranquecido. Há algumas árvores ao fundo e, passando por sobre pequenas colinas, há alguns arbustos esverdeados à frente. O céu é branco em tons de amarelo claro.


Por Iracema Soares de Lima

Começo a contar histórias, verdadeiras. Eu sou alguém desconhecida para vocês, vocês não sabem quem sou?

Por enquanto, vamos ficar no anonimato. Posso dizer que sou uma pessoa com deficiência visual há vinte e nove anos.

Tudo começa em algum lugar encantado chamado de campo, ou fazenda, tanto faz. Os campos de cima da serra são famosos por suas belezas naturais; quando chega o outono, mês do campo verde e amarelado, linda paisagem. Durante três meses, o rigor do inverno, os campos totalmente secos do frio e da neblina, geadas, às vezes neve.

Mês de agosto é o mês de luto, é tempo de queima do capim seco, um ser queimado, horas de chamas correndo campo afora acompanhadas pelos camponeses. Assim os campos amanhecem vestidos de preto, a chuva cai lavando o luto do campo, que fica amarronzado.

Um ou dois dias de chuva são suficientes para os campos brotarem, para as pequeninas sementes das flores, para o verde renascer. A primavera vem chegando de mansinho, os passarinhos preparam seus ninhos carregando no bico o material necessário. A primavera chega devagar, com sua sabedoria, perfumando o ar, colorindo de cores variadas, cores de botões em flores.

O clima também é variado, com um pouco menos de frio. Os campos estão vestidos de verde, cheios de pequeninas flores coloridas, como se ali tivessem passado pequenas mãos de fadas bordando os campos de cima da serra.

Este é o palco, milhas e milhas de campos e capões - grupos de árvores nativas, como o pinheiro ou a araucária, com frutos silvestres, como amoras, guabiroba, goiaba e pinhão -, água corrente, ou vertente de água filtrada pela própria terra – existe também a sanga, que é uma água que corre escondidinha e vagarosa por baixo da vegetação. Os campos têm vários encantos, além de variedades: morros, vales, lagoas onde patos selvagens brincam de mergulhar; o gado, ovelhas e cavalos, e também os pequenos animais selvagens tomam água fresquinha. Além disso tudo, há pequenas moitas com nomes diferentes para os camponeses identificarem as ervas de cura ou vassouras.

Tem muitas lendas. Como exemplo, as lagoas servem  de espelho para as estrelas olharem-se e saberem se o seu brilho está forte o suficiente para chamar a atenção da majestade, o sol. Tentei descrever as melhores lembranças de quando tinha perfeita visão.

Nesse lugar mágico dos campos de cima da serra - o lindo cenário de São Francisco de Paula -, há uma colina com campo e mato onde o sol nasce sorrindo entre os pinheiros, que com suas cachopas de espinhos embalam e protegem as pequenas pinhas. O sol majestoso ilumina toda a colina verde e florida com abelhas cantoras. Descendo-se a colina um quilômetro mais ou menos, chega-se a uma tapera, que é uma casinha abandonada ao século, como se fosse plantada no pé do morro. Uma casa muito velha, pequena, de chão batido, telhado baixo, as paredes apodrecidas, cheias de frestas por onde entrava o minuano, e também o sol quentinho.

As noites de luar iluminavam uma silhueta de criança dormindo um sono profundo. É neste cenário que começam as histórias fantásticas de Eva.

Com noventa anos de histórias para contar, a gaúcha Iracema Soares de Lima é natural de São Francisco de Paula, mas reside em Caxias do Sul, RS. É artista plástica e escritora. Em seus romances, ela mistura ficção e autobiografia para tratar de temas como a transição da infância à vida adulta e as experiências cotidianas enquanto uma pessoa com deficiência visual.

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Comentários

  1. Parabéns vó, esperando opróximo episódio.

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  2. Muito legal vó adorei espero o próximo capítulo desse conto

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