Por Lucas Borba
Toda narrativa
audiovisual que reconstitui eventos reais, ou mesmo que meramente baseada em
tal gênero de eventos, é delicada. Tomando-se a responsabilidade envolvida como
um pressuposto – o que nem sempre ocorre -, é necessário levar em conta
aspectos como o impacto que determinada liberdade criativa pode gerar – seja no
público, em pessoas reais implicadas no caso ou em um segmento da sociedade -, a
qualidade da apuração acerca dos fatos realmente ocorridos e o quanto é
pertinente deixar claro, ao longo da narrativa, o que é ou não é ficção. Desses
aspectos, talvez o maior “problema” - se é que podemos chamar assim – de “A
mulher rei” seja o de nem sempre marcar tão bem essa linha entre o fantástico e
o histórico, o que não diminui em absoluto as suas qualidades.
No longa,
acompanhamos Nanisca (Viola Davis), uma comandante fictícia de um exército que
realmente existiu no Reino de Daomé, um dos locais mais poderosos da África entre
os séculos XVII e XIX. Durante o período, o grupo militar era composto apenas
por mulheres que, juntas, combateram os colonizadores franceses, tribos rivais
e todos aqueles que tentaram escravizar seu povo e destruir suas terras.
Conhecidas como Agojie, o verídico grupo foi criado por conta da população
masculina do reino enfrentar grandes baixas na violência e guerra cada vez mais
frequentes com os estados vizinhos da África Ocidental, forçando Daomé a dar
anualmente escravos do sexo masculino principalmente ao Império Oyo, que usou
isso para a troca de mercadorias como parte do crescente fenômeno do comércio
de escravos durante a Era dos Descobrimentos, fazendo com que mulheres fossem
alistadas para o combate.
Um dos maiores
prazeres em se tratando de boas experiências de narrativa audiovisual é quando
se tem a oportunidade de observar os seus diferentes elementos atuando em
verdadeira harmonia, em prol de um todo no efeito cinematográfico. É o que
acontece em “A mulher rei”. Tudo flui com muita naturalidade, segurança e
beleza no ritmo narrativo, mesmo nas cenas mais selvagens de conflito, que
evocam um empoderamento tão necessário de forma orgânica e imersiva. A trilha
sonora tão assertiva quanto identitária, o tempo de cena dedicado aos rituais
das guerreiras, a ambientação, o bom elenco – Viola Davis está visceral no
realismo de sua personagem -, tudo isso dialoga com um roteiro que sabe nos
conduzir com maestria por motivações e conflitos que conectam as Agojie umas às
outras, de modo a verdadeiramente nos identificarmos com elas e com a alma do
grupo para além do recorte histórico. Por outro lado, seja em que formato
narrativo for, é comum que épicos históricos caiam em uma armadilha ativada por
um peso excessivo em um dos lados de uma balança: ou a busca pelo destaque aos
personagens pode acabar tornando o pano de fundo histórico um mero ornamento de
storytelling, ou uma preocupação excessiva com o retrato de uma época pode
resultar na presença de personagens enfadonhos, cuja construção é deixada em
segundo plano, mas “A mulher rei” apresenta um pleno equilíbrio dessa balança.
É por isso
que, sobre o impacto, se a obra recebe ressalvas de público e crítica quanto a
uma certa reparação histórica narrativa em relação a genuína postura que o
reino de Daomé tomou diante da escravidão vigente, também não faltam aplausos
para tal representatividade e reflexão evocadas pelo filme bem na cara de
Hollywood para o mundo, em conformidade com problemas tão atuais e de origens
bem conhecidas. Mulheres fictícias como Nanisca, Nawi (Thuso Mbedu) e as demais
guerreiras representam mulheres negras reais de ontem, de hoje e de sempre, e
ao conhecermos estas mulheres e nos apaixonarmos pela coragem, pela
determinação, pela força e pela inteligência delas, não é difícil pensar que,
se as coisas não aconteceram de outra forma, podemos fazer a diferença agora.
OBS.: O
filme foi para os cinemas com audiodescrição, esse recurso de acessibilidade
comunicacional tão importante para pessoas com deficiência visual – como eu
próprio -, um serviço que descreve, por meio de uma narração em off, todos os elementos
visuais da obra que aparecem na tela, através de um receptor com fones de
ouvido que o usuário do recurso utiliza para não interferir na experiência dos
demais espectadores. O problema é que, ao menos neste filme, a Sony não incluiu
na audiodescrição a leitura de legendas ou mesmo o áudio original da dublagem
para as cópias legendadas. Deixo aqui o meu alerta para esse importante
cuidado, que amplia e facilita o pleno acesso à obra.
Nota: 4,5/5
“A mulher
rei” (The Woman King), EUA, 2022.
Direção: Gina
Prince-Bythewood.
Roteiro: Dana
Stevens e Maria Bello.
Duração: 135
minutos.
Hashtags: #paracegover
#paratodosverem #paratodomundover #paratodosveremmais #audiodescrição
#descriçãodeimagem #descrevipravocê #acessibilidade #inclusão #cultura
#culturapop #arte #audiovisual #recursosinclusivos #cinema #amulherrei #violadavis
#sony #sonypictures
Comentários
Postar um comentário