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a crítica em vídeo clicando neste link.
Por Lucas Borba
Meu contato
com as obras de Neil Gaiman até assistir aos primeiros episódios de Sandman se limitou
a dois de seus livros, Lugar Nenhum e Deuses Americanos, bem como à série da
Amazon Prime Video que adapta este último e à série Good Omens, do mesmo
streaming. De minha parte, o que posso dizer é que até então, naturalmente
tendo por base apenas as experiências citadas com as produções desse artista
que já se tornou um ícone da cultura pop, considero a imersão nos trabalhos de
Gaiman muito mais um ótimo exercício reflexivo, para não dizer filosófico, do
que propriamente narrativo.
De fato, creio
que a adaptação televisiva de Good Omens foi a produção que mais me gerou expectativas
pelo que estaria por vir e, ainda assim, ao término dos episódios a história me
pareceu muito curta para o potencial de tudo o que apresentou. Ou seja, longe
de serem experiências ruins, mas que dentro de suas propostas com tantas
possibilidades parecem conter limites de desenvolvimento muito bem definidos. O
fascínio pela investigação das divindades associadas à história da humanidade sob
uma releitura contemporânea parece constituir o elemento inspirador de Gaiman.
Tais investigações e releituras são feitas com grande perícia e engenho
criativo pelo escritor e roteirista, e se tais prioridades resultam na eventual
quebra do ritmo narrativo e tornam o viés imaginativo muito mais simbólico do
que propriamente dramático, não falta um público apaixonado por tais
prioridades. Quanto a mim, posso não ser um apaixonado, mas certamente sou um
admirador.
Não é à toa
que fiquei honrado quando a Netflix me concedeu uma prévia da primeira
temporada da aguardada adaptação de Sandman, possibilitando que eu assistisse
aos três primeiros episódios dos dez que compõem a temporada. Tais prévias
sempre são acompanhadas de um embargo para a publicação das críticas e, neste
caso, quaisquer comentários da imprensa acerca do conteúdo só podiam ser
divulgados no dia da estreia da série – 5 de agosto. Por isso, quando você
estiver lendo ou ouvindo esta crítica em nosso canal no Youtube ou no podcast
do Domínio Acessível, o Câmera Cega, a primeira temporada já estará disponível
no catálogo da Netflix. Na sequência, portanto, compartilharei minhas
impressões quanto aos primeiros três episódios disponibilizados na prévia e,
nos próximos dias, publicarei aqui no blog um veredito definitivo da temporada
como um todo. Pelo menos até agora, a prévia não conta com o recurso de
audiodescrição em português e, por isso, sendo eu uma pessoa com deficiência
visual total, não me voltarei aqui para aspectos visuais dos episódios e
focarei em nuances auditivamente perceptíveis, como o texto verbal do roteiro e
a trilha sonora.
Também por
conta de minha deficiência, até hoje não tive a oportunidade de interagir com a
obra original em quadrinhos de Sandman, mas posso dizer que, ao assistir aos
primeiros episódios, pude perceber as características comuns aos trabalhos de
Gaiman muito presentes na estrutura narrativa da adaptação. O personagem
Sandman, ou Mestre dos Sonhos, entre tantos outros nomes, já expressa desde a
sua apresentação a diversidade cultural que o envolve e os primeiros capítulos
começam a esmiuçar esse estudo cultural de forma orgânica e emocional dentro da
narrativa, transitando com naturalidade e de um momento para o outro de
retratações de personagens e divindades hebraicas para gregas e romanas –
destaque para a reencenação de uma das passagens mais icônicas do gênesis bíblico.
A importância, a beleza e os perigos que os sonhos representam e sempre
representaram para a humanidade são captados a contento pelas primeiras horas
da temporada, apresentando personagens que, mesmo cercados por tantos elementos
fantásticos, são tão verossímeis em suas ambições, dores, maldades,
mesquinharias, arrependimentos e, às vezes, em sua bondade. É claro, nada
diferente do esperado em uma obra pautada em relatos clássicos que falam de
questões e anseios dos mais antigos na história humana.
Aliás, o
personagem mais nebuloso em termos de desenvolvimento até então é o próprio
Sandman, mas aparentemente esse cozimento em fogo baixo na construção do
protagonista é proposital. Toda a carga de um passado e, talvez, origem ainda a
serem relatados, bem como as marcas do período no qual, como diz a própria
sinopse da série, ele esteve aprisionado, estão lá, nítidas em uma dureza e
apatia que parece querer demonstrar a profusão de sentimentos que perpassam o
interior do ser “perpétuo”, como também é chamado nosso herói. Se a
expressividade do ator Tom Sturridge acompanha essa que me pareceu ser a
intenção do roteiro, é outra história – fique à vontade para compartilhar suas
impressões quanto a esse e outros pontos nos comentários. Dito isso, a prévia
disponibilizada pela Netflix não constitui nem a metade da temporada, o que
reforça ainda mais minha confiança de que é questão de tempo para que o gradual
vazamento do Sandman por trás da máscara de autopreservação se converta em uma
inevitável inundação do seu verdadeiro eu.
Apesar das
eventuais quebras de ritmo características das histórias de Gaiman em detrimento
de uma maior contemplação de elementos simbólicos muito bem definidos – o que
só parece reiterar a preocupação da adaptação em dignificar os quadrinhos -, sabe-se
que Sandman é um trabalho longo em sua totalidade e, por isso, deixa boas
expectativas acerca de tudo o que realmente pode ser abordado e desenvolvido
dentro desse universo. Cada episódio até então funciona como um pequeno filme,
sendo ótimo observar como simpatizamos a tal ponto com certos personagens que,
quando parecemos nos despedir de algum deles, torcemos para que este retorne em
algum momento, pois captamos o seu potencial. A trilha sonora, por sua vez, é
discreta, não possuindo até agora nenhum tema propriamente em sua
instrumentalização incidental, mas cumprindo um papel condizente com o que
pedem os distintos momentos da narrativa.
A série
Sandman faz uma bela entrada em sua prévia para a imprensa, mostrando o que
Neil Gaiman tem de melhor para oferecer, e criando boas possibilidades para o
que está por vir. Se é uma adaptação digna dos quadrinhos, fãs com certeza
darão seu veredito, mas enquanto narrativa isolada certamente equilibra
oscilações rítmicas em um promissor mito épico contemporâneo sobre nossos
maiores medos e aspirações. Veremos quais sonhos ou pesadelos ainda nos
aguardam.
Nota: 3,5 /
5
Sandman – 1ª
temporada (The Sandman, EUA, 2022)
Criação: Neil
Gaiman, David S. Goyer e Allan Heinberg
Duração: 60
minutos por episódio (em média)
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VocÊ escreve muito bem, Lucas. Curti sua análise da série.
ResponderExcluirAinda não assisti, Mas só de ter o Neil Gaiman na direção, já fico muito empolgado.
Parabéns pelo blog.