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Crítica | “Não! Não olhe!” (2022)

Cartaz do filme "Não! Não Olhe!" (2022)  Foto de um cavalo no ar. É noite e, no céu azul escuro com nuvens, há um cavalo preto no ar, com vários objetos em volta: copos de refrigerante, bonecos de pelúcia, chaves, moedas, óculos e discos de vinil. Tanto o cavalo quanto os objetos estão abaixo de uma nuvem branca e redonda.  Na parte superior central lê-se: "ESCRITO E DIRIGIDO POR JORDAN PEELE". Na parte inferior central estão os nomes dos atores principais: "DANIEL KALUUYA KEKE PALMER STEVEN YEUN". Logo abaixo está o título: "NÃO! NÃO OLHE!". Embaixo, lê-se: "BREVE NOS CINEMAS". "CENAS FILMADAS EM CÂMERAS IMAX". No canto inferior esquerdo há um logo não-identificado e, no direito, está o da Universal Pictures. Tudo está escrito em letras brancas maiúsculas, exceto "IMAX", que está em letras maiúsculas coloridas.


Por Lucas Borba

Consultoria: Vanessa Delfino

Recentemente, o termo “narrativa textão” vem se popularizando para falarmos de um tipo específico de subtexto presente em um filme, uma série ou afins quanto ao Storytelling. Via de regra, “narrativas textão” apresentam, em primeira instância, um conteúdo de fácil percepção, explícito - aquele bem óbvio e exposto claramente nas linhas gerais de introdução, desenvolvimento e conclusão da trama -, e outra camada mais profunda e implícita, que traz em seu subtexto alguma crítica social ou reflexão velada e eventualmente possibilita que a mesma história seja interpretada de formas diferentes.

Narrativas assim são as minhas prediletas, não apenas porque permitem uma união plena entre o entretenimento e a cultura – a arte, creio eu, em seu maior potencial -, mas porque nesse processo ampliam o escopo do público passível de ser impactado pela obra e facilitam a comunhão e a troca de conhecimentos entre pessoas de perfil e realidades distintas. A partir do momento em que o “textão” começa a quebrar o ritmo da narrativa sem um bom senso de sentido, porém, temos um problema, e é justamente isso o que acontece em “Não! Não olhe”, novo filme de terror do diretor Jordan Peele, dos excelentes “Corra!” (2017) e “Nós” (2019), em cartaz nos cinemas.

Como um jornalista com deficiência visual, tive o prazer de assistir ao longa com audiodescrição, esse recurso de acessibilidade comunicacional tão importante que traduz imagens em palavras, por meio de uma narração em off transmitida via fones de ouvido para o usuário, de modo a não interferir na experiência dos demais espectadores que não queiram usufruir do serviço. Deixo aqui minhas congratulações à ETC. Filmes por mais este trabalho de acessibilidade para a Universal Pictures, que para essa audiodescrição contou com a roteirista Gabriela Jacques e seu irmão, o consultor especializado Edgar Jacques.

Problemas de ritmo à parte, estamos falando de Jordan Peele, que já mostrou ao que veio com seus filmes anteriores e também nos dá em que pensar neste novo trabalho, além de entregar alguns inspiradíssimos momentos de tensão. Na história, uma cidade do interior da Califórnia começa a ser assolada por eventos bizarros e de potencial origem extraterrestre. É lá que os irmãos OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) possuem um rancho de cavalos criados para atuarem em Hollywood e são vizinhos de um parque de diversões inspirado no velho oeste. À medida que os irmãos testemunham os eventos misteriosos e a possível força extraterrestre por trás deles, obstinam-se em obter um registro claro em imagem da “coisa” e assim conquistar enfim o tão almejado reconhecimento para a família afrodescendente Haywood.

Para além da superfície, o subtexto aqui é a ameaça extraterrestre sendo tratada como espetáculo – de acordo com uma das possíveis interpretações -, um dos capangas do capitalismo que enfeitiça as pessoas ao ponto de que coloquem a própria segurança em segundo plano em prol de ver a atração um pouco mais de perto, ou de sentir um pouco mais de adrenalina, etc. Tudo isso envolto por uma lógica política, social e econômica que prioriza a fama, a segurança, o bem-estar e o entretenimento dos melhor abastados e reduz o nível dessas mesmas coisas conforme nos afastamos do centro para a margem social, na mesma proporção em que crescem as medidas necessárias ao reconhecimento, ao conforto, à diversão e até mesmo à sobrevivência...

A questão é que tal linha interpretativa, bem como outras derivativas e semelhantes, por vezes esbarra no sentido superficial e a combinação do explícito com o implícito não funciona tão bem quanto deveria. Um exemplo que ilustra bem a natureza desse tipo de situação ao longo do filme é o seguinte: faz todo o sentido que os irmãos queiram obter um bom registro imagético da “coisa”, mas não faz sentido que pouco ou nada falem sobre como capturá-la ou exterminá-la nessa empreitada. Ou seja, se implicitamente o sentido reside na imprudência dos irmãos diante do espetáculo e da possibilidade da fama que a “coisa” representa, em caráter explícito a criatura poderia perfeitamente ser capturada ou exterminada e ainda assim permanecer apta ao registro. Além disso, o fato de os irmãos se lançarem praticamente sozinhos em tal aventura, mesmo que no intuito de apenas capturar a “coisa”, já seria o bastante para que a imprudência referida pelo subtexto dialogasse bem com o sentido explícito, mas a narrativa escolhe retratar os irmãos, em especial OJ, como quase desprovidos de emoção diante da ameaça, ou melhor, muito mais absortos no objetivo final – o registro imagético – do que no esforço, na adrenalina e no risco envolvidos, o que inclusive condiria com o tipo de poder atrativo exercido pelo espetáculo.

Mesmo assim, o filme conta com sequências que valem a sessão por si mesmas. Além da cena dentro de um carro protagonizada por OJ, a direção subjetiva e o trabalho sonoro na passagem da chacina do macaco transformaram esse trecho do longa em uma das experiências mais assustadoras que já vivenciei em uma narrativa audiovisual e aqui a carência em emoção na maior parte do filme o diretor compensa com o impacto, mesmo que por breves momentos. No mais, o lado cômico do também comediante Jordan Peele é sempre inteligente e preciso na construção do viés irônico do longa e amantes de plantão da cultura pop devem se divertir com referências a clássicos atribuídos ao espetáculo cinematográfico, de Spielberg a “O Mágico de Oz” e “King Kong”.

“Não! Não olhe!” só não se equipara aos filmes anteriores de Jordan Peele por incongruências no diálogo entre o texto e o subtexto da narrativa, o que reduz a experiência emocional e o impacto pertinentes à obra, mas o filme se mantém como um exemplar respeitável do gênero terror, que dado o grande acerto na condução de cenas específicas pode ser lembrado, no mínimo, por bastante tempo. Com uma possível sequência já anunciada pelo diretor, resta esperar pelo que nos reserva o próximo espetáculo de Jordan Peele.

Nota: 3,5/5

“Não! Não olhe!” (Nope, EUA, 2022)

Direção: Jordan Pelle

Roteiro: Jordan Peele

Duração: 130 minutos

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