Por Lucas Borba
Consultoria: Vanessa Delfino
Recentemente,
o termo “narrativa textão” vem se popularizando para falarmos de um tipo
específico de subtexto presente em um filme, uma série ou afins quanto ao Storytelling.
Via de regra, “narrativas textão” apresentam, em primeira instância, um
conteúdo de fácil percepção, explícito - aquele bem óbvio e exposto claramente
nas linhas gerais de introdução, desenvolvimento e conclusão da trama -, e
outra camada mais profunda e implícita, que traz em seu subtexto alguma crítica
social ou reflexão velada e eventualmente possibilita que a mesma história seja
interpretada de formas diferentes.
Narrativas
assim são as minhas prediletas, não apenas porque permitem uma união plena
entre o entretenimento e a cultura – a arte, creio eu, em seu maior potencial
-, mas porque nesse processo ampliam o escopo do público passível de ser impactado
pela obra e facilitam a comunhão e a troca de conhecimentos entre pessoas de
perfil e realidades distintas. A partir do momento em que o “textão” começa a
quebrar o ritmo da narrativa sem um bom senso de sentido, porém, temos um
problema, e é justamente isso o que acontece em “Não! Não olhe”, novo filme de
terror do diretor Jordan Peele, dos excelentes “Corra!” (2017) e “Nós” (2019),
em cartaz nos cinemas.
Como um
jornalista com deficiência visual, tive o prazer de assistir ao longa com
audiodescrição, esse recurso de acessibilidade comunicacional tão importante
que traduz imagens em palavras, por meio de uma narração em off transmitida via
fones de ouvido para o usuário, de modo a não interferir na experiência dos
demais espectadores que não queiram usufruir do serviço. Deixo aqui minhas
congratulações à ETC. Filmes por mais este trabalho de acessibilidade para a
Universal Pictures, que para essa audiodescrição contou com a roteirista
Gabriela Jacques e seu irmão, o consultor especializado Edgar Jacques.
Problemas de
ritmo à parte, estamos falando de Jordan Peele, que já mostrou ao que veio com
seus filmes anteriores e também nos dá em que pensar neste novo trabalho, além
de entregar alguns inspiradíssimos momentos de tensão. Na história, uma cidade
do interior da Califórnia começa a ser assolada por eventos bizarros e de potencial
origem extraterrestre. É lá que os irmãos OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e Emerald
Haywood (Keke Palmer) possuem um rancho de cavalos criados para atuarem em
Hollywood e são vizinhos de um parque de diversões inspirado no velho oeste. À
medida que os irmãos testemunham os eventos misteriosos e a possível força
extraterrestre por trás deles, obstinam-se em obter um registro claro em imagem
da “coisa” e assim conquistar enfim o tão almejado reconhecimento para a
família afrodescendente Haywood.
Para além da
superfície, o subtexto aqui é a ameaça extraterrestre sendo tratada como
espetáculo – de acordo com uma das possíveis interpretações -, um dos capangas
do capitalismo que enfeitiça as pessoas ao ponto de que coloquem a própria
segurança em segundo plano em prol de ver a atração um pouco mais de perto, ou
de sentir um pouco mais de adrenalina, etc. Tudo isso envolto por uma lógica
política, social e econômica que prioriza a fama, a segurança, o bem-estar e o
entretenimento dos melhor abastados e reduz o nível dessas mesmas coisas conforme
nos afastamos do centro para a margem social, na mesma proporção em que crescem
as medidas necessárias ao reconhecimento, ao conforto, à diversão e até mesmo à
sobrevivência...
A questão é
que tal linha interpretativa, bem como outras derivativas e semelhantes, por
vezes esbarra no sentido superficial e a combinação do explícito com o
implícito não funciona tão bem quanto deveria. Um exemplo que ilustra bem a
natureza desse tipo de situação ao longo do filme é o seguinte: faz todo o
sentido que os irmãos queiram obter um bom registro imagético da “coisa”, mas
não faz sentido que pouco ou nada falem sobre como capturá-la ou exterminá-la
nessa empreitada. Ou seja, se implicitamente o sentido reside na imprudência
dos irmãos diante do espetáculo e da possibilidade da fama que a “coisa”
representa, em caráter explícito a criatura poderia perfeitamente ser capturada
ou exterminada e ainda assim permanecer apta ao registro. Além disso, o fato de
os irmãos se lançarem praticamente sozinhos em tal aventura, mesmo que no
intuito de apenas capturar a “coisa”, já seria o bastante para que a
imprudência referida pelo subtexto dialogasse bem com o sentido explícito, mas
a narrativa escolhe retratar os irmãos, em especial OJ, como quase desprovidos de
emoção diante da ameaça, ou melhor, muito mais absortos no objetivo final – o registro
imagético – do que no esforço, na adrenalina e no risco envolvidos, o que
inclusive condiria com o tipo de poder atrativo exercido pelo espetáculo.
Mesmo assim, o
filme conta com sequências que valem a sessão por si mesmas. Além da cena
dentro de um carro protagonizada por OJ, a direção subjetiva e o trabalho
sonoro na passagem da chacina do macaco transformaram esse trecho do longa em
uma das experiências mais assustadoras que já vivenciei em uma narrativa
audiovisual e aqui a carência em emoção na maior parte do filme o diretor
compensa com o impacto, mesmo que por breves momentos. No mais, o lado cômico
do também comediante Jordan Peele é sempre inteligente e preciso na construção
do viés irônico do longa e amantes de plantão da cultura pop devem se divertir
com referências a clássicos atribuídos ao espetáculo cinematográfico, de
Spielberg a “O Mágico de Oz” e “King Kong”.
“Não! Não
olhe!” só não se equipara aos filmes anteriores de Jordan Peele por
incongruências no diálogo entre o texto e o subtexto da narrativa, o que reduz
a experiência emocional e o impacto pertinentes à obra, mas o filme se mantém
como um exemplar respeitável do gênero terror, que dado o grande acerto na
condução de cenas específicas pode ser lembrado, no mínimo, por bastante tempo.
Com uma possível sequência já anunciada pelo diretor, resta esperar pelo que
nos reserva o próximo espetáculo de Jordan Peele.
Nota: 3,5/5
“Não! Não olhe!” (Nope, EUA, 2022)
Direção: Jordan Pelle
Roteiro: Jordan Peele
Duração: 130 minutos
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